O mural do Jardim do Mar, monumento localizado no concelho da Calheta, freguesia do Jardim do Mar, foi demolido sem justificação em 2004 com a remodelação urbanística do centro da localidade.
Da autoria do artista californiano Charlie Clingman, o mural consistia em 70 metros quadrados de pintura a fresco, tinta de acrílica sobre cimento, representando a envolvência paisagística da respectiva localidade. Estava dividido em duas metades, uma de fundo rosa com legenda: nome da localidade pintado a letras azuis de grafia arredondada, e uma com a representação da paisagem propriamente dita, da direita para o centro: o exotismo de um exuberante poio de bananeiras, no centro da composição o centro da freguesia assinalado pela torre da igreja e a escarpa acastanhada e vertical em relação ao povoado e à planura do mar - característica geológica do oeste da ilha - sulcada por um barco de pesca típico, o único elemento humano dinâmico da composição. À esquerda, ao fundo, havia uma lista com agradecimentos e uma faixa drapeada com um lema. O mar ocupava mais de metade da composição e as ondas, em grande plano, rolavam com grande perfeição geométrica, invocação clara ao tema do surf, actividade desportiva, recreativa e turística que colocou o Jardim do Mar no mapa do surf mundial.
“Ex-líbris” artístico da freguesia, este mural foi não só a primeira encomenda artística feita ao pintor norte-americano[1] estando ele em viagem na Europa, enquanto turista, quando foi comissionado a realizar a pintura, como foi a obra inaugural do seu percurso artístico que o acabaria por levar a por de parte o curso de arquitectura e seguir o curso de artes, especializando-se em pintura.[2] Para isto em muito contribuiu, em grande medida, como o próprio pintor testemunha no seu portfólio virtual[3], o calor humano ao redor da execução do projecto artístico, o entusiasmo que ele denotou nas pessoas da localidade ao se aperceberem de que a pintura retratava e exaltava a beleza natural e o pitoresco da freguesia, terra natal de muitas delas. Mais do que qualquer elogio artístico o entusiasmado movimento humano levou Charlie Clingman a tomar consciência do poder da arte em despertar tanto o sentimento identitário das pessoas, como em fortalecer e tornar perenes as raízes das gentes de uma terra, percebendo igualmente a função da arte e da cultura para a coesão social e para o respeito pelo meio ambiente, tendo organizado com os jovens locais a primeira limpeza de praia da história da freguesia.
Hoje em dia o artista é um dos grandes pintores da “surf art” e um grande paisagista, especialista na pintura de line-ups de surf[4], consagração artística, que se deve, como vimos, ao mural pintado em 1995 num lugarejo remoto e isolado como o Jardim do Mar. Além do valor biográfico e artístico da obra, sendo um magnífico exemplar de pintura mural em espaço público constituía uma raridade tipológica do património imóvel da região. É de acrescentar que o seu estado de conservação era muito bom pois tinha sido alvo de um repinte em 2000 feito pelo próprio autor, tarefa de restauro tudo indica encomendada, ou se não pelo menos encorajada, pela entidade que havia comissionado Charlie a executá-lo[5].
Em 2004, como, desenvolveremos mais à frente, não havendo qualquer inventário do património imóvel de âmbito regional ou municipal realizado, teria sido impossível, sendo tal obra um bem cultural público, “os representantes das autarquias locais e das demais pessoas colectivas públicas não territoriais” chegarem a apresentar, portanto, “à administração do património cultural competente”[6] instrumentos de “descrição de todos os bens” culturais da autarquia, sendo algum deles susceptível de integrar a matriz de inventário do património cultural/móvel ou imóvel da região.
O mural e, monumento artístico porque obra de pintura monumental tal como definido pela convenção da UNESCO de 1972, não estava inventariado, nem classificado, estando portanto ameaçado de degradação ou destruição total ou parcial, tal como todos os imóveis que são merecedores de serem inventariados por reunirem um conjunto de critérios que lhes atribuem “valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade” e estão por identificar. Apesar de não inventariado o monumento reunia indiscutivelmente alguns dos critérios genéricos de apreciação, referidos na lei do património cultural em vigor[7]:
- “b) O génio do respectivo criador;” (fig 2.)
- “d) O interesse do bem como testemunho notável de vivências ou factos históricos;” (fig. da capa e fig. 1)
- “e) O valor estético, técnico ou material intrínseco do bem;” (fig. 2)
- “f) A concepção arquitectónica, urbanística e paisagística;”
(fig. da capa)
Da autoria do artista californiano Charlie Clingman, o mural consistia em 70 metros quadrados de pintura a fresco, tinta de acrílica sobre cimento, representando a envolvência paisagística da respectiva localidade. Estava dividido em duas metades, uma de fundo rosa com legenda: nome da localidade pintado a letras azuis de grafia arredondada, e uma com a representação da paisagem propriamente dita, da direita para o centro: o exotismo de um exuberante poio de bananeiras, no centro da composição o centro da freguesia assinalado pela torre da igreja e a escarpa acastanhada e vertical em relação ao povoado e à planura do mar - característica geológica do oeste da ilha - sulcada por um barco de pesca típico, o único elemento humano dinâmico da composição. À esquerda, ao fundo, havia uma lista com agradecimentos e uma faixa drapeada com um lema. O mar ocupava mais de metade da composição e as ondas, em grande plano, rolavam com grande perfeição geométrica, invocação clara ao tema do surf, actividade desportiva, recreativa e turística que colocou o Jardim do Mar no mapa do surf mundial.
“Ex-líbris” artístico da freguesia, este mural foi não só a primeira encomenda artística feita ao pintor norte-americano[1] estando ele em viagem na Europa, enquanto turista, quando foi comissionado a realizar a pintura, como foi a obra inaugural do seu percurso artístico que o acabaria por levar a por de parte o curso de arquitectura e seguir o curso de artes, especializando-se em pintura.[2] Para isto em muito contribuiu, em grande medida, como o próprio pintor testemunha no seu portfólio virtual[3], o calor humano ao redor da execução do projecto artístico, o entusiasmo que ele denotou nas pessoas da localidade ao se aperceberem de que a pintura retratava e exaltava a beleza natural e o pitoresco da freguesia, terra natal de muitas delas. Mais do que qualquer elogio artístico o entusiasmado movimento humano levou Charlie Clingman a tomar consciência do poder da arte em despertar tanto o sentimento identitário das pessoas, como em fortalecer e tornar perenes as raízes das gentes de uma terra, percebendo igualmente a função da arte e da cultura para a coesão social e para o respeito pelo meio ambiente, tendo organizado com os jovens locais a primeira limpeza de praia da história da freguesia.
Hoje em dia o artista é um dos grandes pintores da “surf art” e um grande paisagista, especialista na pintura de line-ups de surf[4], consagração artística, que se deve, como vimos, ao mural pintado em 1995 num lugarejo remoto e isolado como o Jardim do Mar. Além do valor biográfico e artístico da obra, sendo um magnífico exemplar de pintura mural em espaço público constituía uma raridade tipológica do património imóvel da região. É de acrescentar que o seu estado de conservação era muito bom pois tinha sido alvo de um repinte em 2000 feito pelo próprio autor, tarefa de restauro tudo indica encomendada, ou se não pelo menos encorajada, pela entidade que havia comissionado Charlie a executá-lo[5].
Em 2004, como, desenvolveremos mais à frente, não havendo qualquer inventário do património imóvel de âmbito regional ou municipal realizado, teria sido impossível, sendo tal obra um bem cultural público, “os representantes das autarquias locais e das demais pessoas colectivas públicas não territoriais” chegarem a apresentar, portanto, “à administração do património cultural competente”[6] instrumentos de “descrição de todos os bens” culturais da autarquia, sendo algum deles susceptível de integrar a matriz de inventário do património cultural/móvel ou imóvel da região.
O mural e, monumento artístico porque obra de pintura monumental tal como definido pela convenção da UNESCO de 1972, não estava inventariado, nem classificado, estando portanto ameaçado de degradação ou destruição total ou parcial, tal como todos os imóveis que são merecedores de serem inventariados por reunirem um conjunto de critérios que lhes atribuem “valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade” e estão por identificar. Apesar de não inventariado o monumento reunia indiscutivelmente alguns dos critérios genéricos de apreciação, referidos na lei do património cultural em vigor[7]:
- “b) O génio do respectivo criador;” (fig 2.)
- “d) O interesse do bem como testemunho notável de vivências ou factos históricos;” (fig. da capa e fig. 1)
- “e) O valor estético, técnico ou material intrínseco do bem;” (fig. 2)
- “f) A concepção arquitectónica, urbanística e paisagística;”
(fig. da capa)
Mas, nem o visível valor artístico do monumento, nem o seu interesse turístico como ponto de interesse local, pelos seus valores intrínsecos, decorativos, estéticos, simbólicos ( já que constituía um perfeito símbolo de intercâmbio turístico e cultural por ter nascido num contexto semelhante de troca de contactos humanos entre níveis de significação local e global, ou seja, entre o pintor, estrangeiro e as pessoas do Jardim, locais[8]) foram razões impeditivas para a sua demolição. E assim o mural, visto por muita gente como “uma parede pintada” e não como monumento, ficou à mercê da insensibilidade generalizada para com o património cultural edificado e das vicissitudes políticas da região. Aspectos cuja própria demolição do monumento comprova. Foi autorizada legalmente pelos decisores públicos, bastando para isso ter sido alegado o interesse público da remodelação urbanística então em curso, condição jurídica para a prossecução de toda e qualquer obra pública.
Não cabe no presente estudo investigar se a demolição foi ou não um acto deliberado. É importante observar, contudo, visto o monumento ser um símbolo do passado da freguesia constituindo um panegírico das vivências da cultura local pré-existentes, tais como o surf, que além da falta de instrumentos de conhecimento, conservação e defesa do património ao serviço da administração local, a circunstância política e ideológica da localidade estava marcada pela polémica da construção de uma muralha e promenade nas margens e leitos do mar da freguesia, responsáveis pela degradação directa da qualidade das ondas do Jardim do Mar, reconhecido como um dos melhores surf spots do mundo. Esse assunto gerou imensa polémica e levantou a questão do desenvolvimento pouco cuidadoso e sem critérios a nível de ordenamento do território. Circunstância, portanto, nada favorável à preservação de um monumento, vivo e comunicativo conotado com um tema fracturante como a questão da salvaguarda das ondas, linhas de costa e meio ambiente da ilha em geral. Para a remodelação do centro da freguesia já não contavam valores de preservação histórica dos sítios, idiossincrasias, ambiente e paisagens locais, veiculados pelo mural, pertencentes ao passado, mas sim evitar qualquer símbolo do Jardim do Mar antigo no novo contexto político, cultural e social da “Madeira Nova”[9], assim definido pela retórica dos dirigentes político-partidários da região.
[1] Uma instituição pública ou privada? A câmara, a junta, o governo ou o proprietário da casa e do muro?
[2] Cfr: http://www.delmararts.com/CC_artwork/charlie.html, acedido a 18/01/2011.
[3] Cfr: http://www.delmararts.com, acedido: 19/01/2011.
[4] Line-up para os desportos de ondas: cenário, vista para a rebentação de ondas surfáveis.
[5] Saber se era uma entidade pública ou privada seria bastante revelador a outros níveis, no entanto o que importa é de facto observar que a pintura estava em muito bom estado de conservação.
[6] Artigo 63 da Lei de Bases da Cultura, Op Cit.
[7] Artigo 17, Op Cit.
[8] Sobre esta questão Ver a Carta Internacional sobre o Turismo Cultural, ICOMOS
[9] Designação tornada corrente para descrever o contexto social, político, económico e cultural da Madeira na actualidade em oposição a um contexto passado, conhecido como “Madeira Velha”.
texto cedido por "Higino Afonso"